Fortalecendo

2 de maio de 2010

Pássaro na gaiola


Mais uma vez aquilo se repetia. Dez, onze horas. Meia noite. Foi dormir, cansou-se de jogar no computador. Não era a primeira vez que ele tardava a chegar em casa, mas isso vinha se tornando muito freqüente. Antigamente ficava furiosa com ele, desesperada até, pode-se dizer, mas há muito que não se sente assim. Antes não dormia esperando ele chegar, chorava, pensava sempre nas piores coisas. Agora não mais. O que sentia agora era uma sensação estranha, um misto de indiferença com um certo alívio por ter passado a noite sem ele.
Naquela noite, não voltou para casa. No dia seguinte, quando apareceu, já estava quase na hora do almoço. Ele lhe pareceu transtornado. Não a olhava nos olhos e tinha aquele jeito que ela já conhecia quando ele mentia. Ela não lhe perguntou nada. Não queria saber com quem estivera, onde estivera. Até porque já estava cansada de ouvir mentiras. Estava cansada de fingir que acreditava. Estava cansada de ser aquela que ele esperava que ela fosse. Estava cansada de ser aquela que todos esperavam que ela fosse.
Ele tomou um banho, comeu um sanduíche e foi dormir. Pareceu-lhe tenso, nervoso, mas não se interessou em perguntar-lhe nada. Não queria ter sua inteligência subestimada.
Almoçou só com o menino, que por diversas vezes foi até o quarto chamar o pai, mas ele não lhe ouviu. O garoto queria brincar e já havia chamado pelo pai logo cedo, ao acordar-se. Sentia sua falta. Queria o pai de corpo e alma e não somente de corpo, como normalmente acontecia. Era agora isso que mais lhe doía. Isso  realmente lhe feria, ver o filho desejando a presença de uma pai que, mesmo junto, estava sempre muito distante. 
À tarde, ela saiu com o menino, ele ficou dormindo. Quando ela voltou, ele ainda estava deitado. Ele tentou falar onde estivera, mas ela o deteve com um gesto. Não era mais possível continuar com aquilo, aquele jogo de "mente-que-eu-acredito" estava acabando com ela. Já não suportava mais. Nem tinha porque suportar, pensou. O encanto do início, há muito que se perdera; respeito, se houvesse ainda, não haveriam as mentiras. Para que então ficar mantendo aparências, passando uma imagem de casal feliz, se em verdade sua vida estava em ruínas? Não queria mais aquilo. Não tinha mais forças.
Ela queria ser ela, ser alguém livre para fazer as próprias escolhas, livre para tomar suas próprias decisões sem interferências. Ela simplesmente queria paz, um pouco de paz, uma vida normal. 
Ele não percebia o quanto mal lhe fazia cada vez que mentia para ela, cada vez que chegava em casa tarde, desferindo suas palavras contra seu coração. Ela não tinha liberdade para ser aquilo que desejava ser. Não conseguia sequer expor o que pensava, pois era muita pressão, não só do marido mas também por parte de outras pessoas, tanto familiares quanto demais pessoas com as quais as circunstâncias a obrigavam a conviver diariamente. 
Sentia-se como um passarinho quando entra acidentalmente por uma janela. Fica se debatendo em busca da saída, mas não a consegue encontrar. Voa em direção à claridade, mas só consegue encontrar uma vidraça fechada. Debate-se contra objetos e móveis, até cair, ferido. E quando finalmente é pego, imagina que vai ter de volta sua liberdade, mas o seu destino é a gaiola. Já não canta. Não tem mais alegria ao amanhecer. A vida passa e ele apenas assiste. Assim ela está. Como um pássaro aprisionado numa gaiola feita de pessoas. Cujo canto agora é um lamento de dor ecoando no silêncio de seus pensamentos. 



Soubesses tu como me dói o amor sobre as asas, como as arranca e as pisa, as queima. O amor é tal e qual um enorme pássaro de fogo a queimar-me a pele, a rasgar-me a carne que me constitui o peito. Os pássaros têm alma, os pássaros oferecem coração quando cantam. E eis que eu sou um pássaro. Canto o amor que me mata e ainda grito contente como me dói o amor sobre as asas. Eis o que sou: um pássaro de ferro, fogo e lágrimas. Um pássaro pintado de cores bonitas que se afoga na tinta que cobre as suas penas. E eu, que cresci em gaiola de ouro e sonhei com flores de laranjeira, nada sou cá dentro senão um pássaro. Sabes, mesmo em gaiola de ouro, o pássaro não deixa de ser pássaro aprisionado no seu próprio sonho. Respiro ouro, mas choro água. E tu és, algures, o ar para lá da gaiola e da laranjeira. Eu estendo as asas e és tu o céu que eu quero atingir para lá das grades. Tu és céu, eu sou ave. O que acontece a uma ave quando a privam do céu?

(Drummond)

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